Qual é, afinal, o papel do Direito (leia-se, Constituição)? “Mais Estado ou menos Estado?” “Retribuição ou ressocialização?” “O aborto deve ser permitido ou proibido?” “As pessoas podem portar armas?” “E as drogas?” “As pessoas devem portar armas?” “Ações afirmativas são justas ou injustas?”
Eu poderia seguir durante horas, com exemplos e mais exemplos, porque o tamanho da lista só é proporcional à polarização e ao grau de divisibilidade que esses desacordos engendram em uma comunidade política.
Se fizéssemos uma pesquisa, teríamos as mais variadas respostas aos desacordos que tomei como exemplos. Se assim o é em tão pequena amostragem, imaginem, então, as divergências em um país continental como o Brasil.
Discordamos, e discordamos muito. Argumentamos, e argumentamos ferrenhamente sobre aquilo em que acreditamos.
Os desacordos e o Direito
Seja como for, falemos em verdades ou opiniões, em crenças ou atitudes, o fato é o seguinte: discordamos, e esses desacordos devem ser resolvidos. Como Dworkin, como Waldron, penso que a resolução desses desacordos, em uma democracia, passa pelo Direito.
Em uma democracia, o Direito tem papel fundamental nisso. De todo modo, a certa altura do caminho, os três tomamos rumos diferentes.
Jeremy Waldron dirá: “Talvez os emotivistas estejam certos e não haja uma verdade moral; talvez, estejam errados. Seja como for, haverá desacordos, e, por isso, eles devem ser resolvidos por maioria no Parlamento. É o mais democrático”.
Respeito a posição de Waldron e, em abstrato, até consigo concordar em algum grau. Mas bem se vê que Waldron é da Nova Zelândia, terra d‘O Senhor dos Anéis. Waldron não conhece o Parlamento brasileiro. Para sorte dele.
Dworkin é um coerentista. Dirá “há, sim, verdades morais, há uma unidade no valor, e as Cortes — fóruns de princípio — devem regular nossos desacordos com coerência e integridade, ajustando os princípios de moralidade política à prática institucional e garantindo que os direitos sejam trunfos contra uma possível tirania da maioria”.
Todos sabem de meu apreço por Dworkin. Também respeito sua posição: o Direito deve ser contramajoritário por razões democráticas em alguns momentos. Mas se Waldron não conhece nosso Legislativo, Dworkin não conheceu o Brasil; os “doze trabalhos de Hércules” não desceram tanto ao sul.
Eu tomo um terceiro caminho. Nosso Direito já é emotivista de há muito, e vou mostrar isso logo mais.
“Não há verdades.” “É tudo uma questão de opinião, de atitudes e emoções.” Vejo isso em congressos, salas de aula e livros… Vivemos um realismo retrô (na sequência isso ficará mais claro). É justamente esse tipo de relativismo que autoriza que se diga qualquer coisa sobre qualquer coisa. Ora, se não há verdades, se é tudo uma questão emotivista, nada obriga o juiz. E os professores não ensinam nada diferente. Não todos, é claro.
O Direito tem uma tradição própria. Tem sua autonomia. Não sou positivista, e reconheço tranquilamente que a moral, a política e a economia são elementos que constroem o império do Direito. Só que, uma vez construído, esse império filtra (ou deveria filtrar) a moral, a política, a economia. E dá a resposta. Que tem de ser adequada à Constituição. Enquanto ela existir.
Os 35 anos da CF
Em 35 tópicos, falarei de nossa Constituição. Na verdade, sobre esse tempo de Constituição. Por ela devemos resolver nossos desacordos. Como estamos? Como chegamos até aqui? Qual é o balanço de mais de três décadas? Ao trabalho.
1. No dia 6 de outubro de 1988, fiz meu primeiro controle difuso de constitucionalidade. Era promotor de Justiça.
2. Minha ortodoxia constitucional começou ali, no dia seguinte à promulgação da Constituição. E por esse caminho venho trilhando dia a dia, lutando pela preservação do grau de autonomia do Direito minimamente necessário para que os predadores externos e internos não façam soçobrar o direito legislado, desde que esse, é claro, esteja em conformidade com a Constituição.
3. Por isso, desde então tenho insistido nos seguintes pontos: Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais etc. Só que essas, depois que o Direito está posto — nessa nova perspectiva (paradigma do Estado Democrático de Direito) —, não podem vir a corrigi-lo. Eis porque rejeito o emotivismo e suas derivações (realismo, voluntarismo etc.).
4. Nestes 35 anos, houve — e continua a haver — uma enorme dificuldade de nos livramos dos fantasmas do passado. Face ao predomínio, anterior à Constituição, de um formalismo sustentado no positivismo legalista (clássico), os primeiros anos de vigência da Constituição foram palco de uma invasão de posturas, teses e teorias que visavam a matar o velho inimigo até então identificado: o juiz boca da lei (de onde saiu isso, afinal?), que representava, no imaginário jurídico, o positivismo que atravessava o século 19 e ingressara no século 20.
5. E o maldito lema passou a ser: “com a nova Constituição, morreu o juiz boca da lei e nasceu o juiz dos princípios“. Incrível. Não haveria mais subsunção. “Sentença vem de ‘sentire‘”, dizia-se aos quatro ventos. E começou o caos. O armagedom.
6. O novo tempo passara a ter como protagonista uma coisa chamada “valores” (sic), com o fundamento de que, superado o positivismo (sic), agora tínhamos que argumentar para sustentar o juiz protagonista.
7. Claro: “desamarrado da subsunção” (isso virou um meme e lenda urbana), como que a lembrar os voluntarismos da Escola do Direito Livre ou da Livre Investigação Cientifica, parcela considerável de nossa doutrina passou a dar a alforria para a livre criação do Direito (uma coisa de mais de, então, quase cem anos virou “o novo”) como se a Constituição não apontasse exatamente para o contrário: agora precisávamos fazer cumpri-la. Menos liberdade interpretativa, pois. E isso não tem nada a ver como “ser positivista”.
8. Tudo isso pode ser traduzido do seguinte modo: a promulgação da Constituição enfrentou uma longa caminhada, cheia de percalços: do formalismo civilista (que invadiu outras áreas), que insistia em interpretar a Constituição a partir da lei, para uma tardia jurisprudência dos valores (recepcionada aliás no marco do velho culturalismo jurídico realeano, não menos conservador e autoritário), que despreza(va) a lei e reduz(ia) a Constituição a valores abstratos.
9. Dito de outro modo, promulgada a CF, ocorreu uma corrida b”” (sic) que pudesse “derrotar” o juiz “boca da lei” (sic), sem que a doutrina explicasse o que era (ou é) o princípio (isso é dito até hoje, quando ainda se repete o enunciado performativo de que “princípios são valores”). Parcela majoritária da doutrina mais apostou em seguir o que a jurisprudência passou a dizer.
10. E foi sendo formatado o constitucionalismo da efetividade, uma mistura de realismo jurídico e altas doses de subjetivismo, dependendo do protagonismo judicial em doses equiparáveis àquilo que Bülow reivindicava dos juízes alemães para a importação do Direito romano naquele fim de século 19.
11. Sem dúvida, era sedutor ver determinados juízes e tribunais assumirem a vanguarda (iluminista?) da implementação dos direitos constitucionais, coisa que não se via antes da Constituição.
12. De minha parte, embora concordasse com a tese de que, de fato, havia um deslocamento forte do polo de tensão em favor do Judiciário (ou dos Tribunais Constitucionais), sempre coloquei desconfiança para com o protagonismo judicial. É evidente que nos primeiros anos era necessário absorver esse novo paradigma constitucional e fazer a transição de um imaginário jurídico que desconhecia o significado de Constituição em direção ao Estado Constitucional.
13. Vigência não é igual a validade — eis um ponto fulcral que ajudei, junto com tantos juristas, a construir para derrotar leis anteriores à Constituição. Enfim posso dizer que pratiquei a CF cotidianamente como modo de implementar a melhor jurisdição possível no contexto de um Judiciário refratário a inovações. Criei — e ajudei a criar — mais de uma dezena de teses. Nos anos 2000, quando Canotilho disse que a Constituição Dirigente morrera, de imediato propus que adotássemos uma Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia.
14. Lembro também que, já nos anos 90, repetia, como um mantra, um julgado do Tribunal Constitucional da Espanha, do ano de 1981, que determinava o óbvio: que os juízes aplicassem a Constituição.
15. Ainda hoje a dogmática jurídica confunde ativismo com judicialização, o que cria grandes transtornos. Para isso, criei as três perguntas fundamentais para fazer essa distinção. Sendo uma das três perguntas respondida negativamente, estar-se-á, com razoável grau de certeza, em face de uma atitude ativista. Para ver mais, consulte o voto do ministro Gilmar no caso Hommeschooling.
16. Aliás, até hoje, nas salas de aula, em parcela da doutrina e nas práticas jurisprudenciais, ainda se pensa que positivismo é igual a juiz boca da lei. Esquecem-se de que o próprio Kelsen foi um positivista pós-exegético, olvidam o que foi produzido pelos positivistas pós-hartianos, que apontaram suas baterias para longe do velho exegetismo — isto porque o positivismo da era pós-Hart já não obriga(va) os juízes. Por isso fiz o Dicionário de Hermenêutica.
17. Talvez por causa desses detalhes nebulosos é que, em um segundo momento, parte da doutrina se inebriou com certas teorias argumentativas e com uma vulgata da ponderação — o que provocou um verdadeiro estado de natureza interpretativo —, tornando necessário, então, que os juristas críticos começássemos a elaborar críticas aos diversos voluntarismos.
18. Isso tudo é tão grave que, passados os 35 anos, ainda há forte resistência à tese de que os juízes não possuem livre convencimento. O CPC de 2015 expungiu a palavra “livre” e, mesmo assim, parcela considerável dos processualistas continua a sustentar essa liberdade. No fundo, eis aí o emotivismo tão bem denunciado por MacIntyre.
19. E o protagonismo judicial foi se tornando cada dia mais intenso. As fragilidades do presidencialismo de coalizão foram ajudando a tornar o judiciário cada vez mais proativo, passando a ditar “políticas” de forma ad hoc, sem a devida preocupação com os requisitos da judicialização, dentro da diferença entre esta e o ativismo. Atualmente vemos isso se tornar mais crítico, com uma espécie de backlash tupiniquim do parlamento contra o STF.
20. Parece que, passados mais de três décadas, não ultrapassamos o velho dualismo metodológico, pelo qual a realidade vale mais do que a CF. A voz das ruas fagocita a Constituição. O dualismo é um vírus epistêmico; um tsunami dogmático.
21. Assim, todos os grandes julgamentos incorporaram essa dualização, propiciando que uma dita realidade social se sobrepusesse à realidade normativa. Assim foi no Mensalão, na operação “lava jato” (e os recursos judiciais decorrente de seus julgamentos), e no caso das diversas ações envolvendo aquele que é o maior julgamento destes 35 anos: a presunção da inocência e sua redefinição a partir do HC 126.292, ocasião pela qual o STF ignorou a literalidade (sim, tivemos que sustentar no STF que, na democracia, defender a lei não é proibido) do artigo 283 do CPP sem, no entanto, declará-lo inconstitucional. Somente em 2019 conseguimos reverter.
22. Não somente a Suprema Corte, mas também as demais instâncias do Judiciário e do MP aos poucos foram institucionalizando uma disputa entre o Direito e a Moral, tendo dado ganho de causa aos argumentos morais. A Lei da Ficha Limpa, a perda de mandatos parlamentares, o Mensalão, a presunção da inocência, os julgamentos iniciais da “lava jato” (veja-se o escândalo das suspeições), entre outros tantos, com um relevante detalhe: até mesmo nos casos em que a questão constitucional se apresentava como um easy case, houve pronunciamentos invocando ponderações (isso virou uma jus pandemia) inexistentes, como se pode ver recentemente no caso da prisão decorrente de tribunal do júri e no juiz das garantias, em que a interpretação conforme serviu como meio para substituir o texto aprovado pelo Legislativo por um outro da lavra do STF.
23. Nestes 30 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias políticas do poder. Gravíssimo isso.
24. Resultado: quando precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais, mormente no âmbito do processo penal. Sequer conseguimos implementar o artigo 212 do CPP.
25. O que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país. Daí a pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, em outras palavras, ele é o que o Judiciário diz que ele é? Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção, por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito? Somos mesmo jus resilientes.
26. E a democracia? Os brasileiros não temos certeza se (já) atravessamos a tempestade dos últimos anos. A democracia esteve por um fio há alguns meses. Quase que não chegamos aos 35 anos. E o STF, insista-se, teve papel fundamental na preservação da democracia. Se em um primeiro momento a corte deixou-se levar pelo imaginário social punitivista formatado pela mídia que assumiu o lado lavajatista da história (isso é, hoje, fato histórico), em um segundo momento o STF fez a coisa certa. Inclusive quando, acossado e abandonado pela PGR, teve que lançar mão de seu regimento interno. E dali surgiu o “grande inquérito”. Que, paradoxalmente, ajudou a salvar o EDD. Isso tem de ser dito.
27. E, assim, atravessamos o mar revolto que incluiu tentativa de golpe de Estado. Entendemos (quase) tardiamente que devemos considerar o Direito como um grau acentuado de autonomia frente à política, moral e econômica. Enquanto as democracias europeias se deram conta de que o Direito pós-bélico necessitava de um elevado grau de autonomia do Direito — afinal, o grande mote foi “Constituição (agora) é norma” —, por aqui, o Direito continuou a ser tratado como uma mera racionalidade instrumental. Damo-nos conta quando a água estava pelo pescoço. Espero que tenhamos aprendido — no que sou cético.
28. De todo modo, continuo propondo o que já fizera no dia 6 de outubro de 1988, quando fiz meu primeiro judicial review tornando não recepcionado o procedimento judicialiforme (Lei 6.416): a resistência constitucional. Cunhei a frase em 2014: cumprir e propugnar pela legalidade constitucional hoje é um ato revolucionário. Sejamos revolucionários.
29. Venho desenvolvendo essas temáticas nestes 30 anos de nossa Lei Maior, a partir do que denominei, de há muito, de Crítica Hermenêutica do Direito. São mais de 70 livros e centenas de teses e dissertações orientadas sob essa visão.
30. Mientrastanto, passados 35 anos, aumenta o realismo jurídico (podem chamar de jurisprudencialização do Direito). Mas isso, infelizmente, parece não preocupar a comunidade jurídica. Aliás, em breve lanço livro sobre A Crise do Ensino Jurídico e fiquei surpreso como esse tema não aparece nas dissertações e teses sobre o assunto. Paradoxalmente, o que mais cresceu no Brasil foi a jurisprudencialização.
31. Precedentes: o que é isto? Ainda não sabemos, neste aniversário de 35 anos, por que “tese” é precedente e o que é um precedente meramente persuasivo. Cresceu também a jurisprudência defensiva — sobe o número de vítimas cotidianamente.
32. E o patinho feio dos recursos, os embargos, continua a ser um inferno na vida dos causídicos.
33. E a dogmática jurídica se afunda dia a dia no criterialismo: discute em abstrato conceitos que acabam obscurecendo o próprio Direito.
34. No mais, o professor de Direito, esse ser em extinção, que efetivamente está comprometido com a CF e não com qualquer teoria política de poder rasa, é, hoje, um subversivo. Esse professor, se estiver acompanhado de outros pesquisadores (quatro ou mais), corre sempre o risco de ser processado pelo crime de obstrução epistêmica da justiça.
35. Mas vejamos: o saldo é positivo. Sobrevivemos a um conjunto de iniciativas golpistas (e não apenas o 8 de janeiro). E cá estamos. Alvíssaras.
Parafraseando T. S. Eliot — segundo o qual, em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo —, permito-me dizer que, em um país com tantos voluntaristas e realistas, quem defende a legalidade é taxado de “positivista” — o que não apenas significa ignorância (no sentido de não saber), como também um sintoma dos efeitos deletérios que uma frágil teoria do Direito provocou, e continua provocando, no seio do Direito brasileiro.
Por Lenio Luiz Streck, via Conjur